O cinema muitas vezes trabalha com estopins moderados, que têm como principal função apresentar um problema e esconder, durante parte do filme, outros de proporções maiores. Assim sendo, Ben–Hur (1959), uma das tramas mais grandiosas da história do cinema, tem como incidente que incita a narrativa um objeto – mais especificamente uma telha mal colocada – que acerta, por azar, a cabeça de um magistrado romano.
Na pacata cidadezinha de classe média inglesa de Garotas do Calendário (2003), o objeto que move a trama é a arrecadação para compra de um novo sofá para ala de leucemia do hospital local.
Se estivéssemos na Itália destruída pela Segunda Guerra Mundial do Ladrão de Bicicletas (1948) de Vittorio De Sica, o objeto seria uma bicicleta roubada. Se a câmera nos levasse para o Irã de Filhos do Paraíso (1998), o objeto a ser alcançado seria um simples par de sapatos. Mas são outras épocas, outros espaços e outros cinemas. Voltemos para Garotas do Calendário.
A vila pacata
A câmera revela uma pequena assembleia com cadeiras ocupadas por mulheres de meia idade. Estamos numa reunião do Women’s Institute (Instituto de Mulheres), e a montagem repartida mês a mês, não tarda a reproduzir em tela a estafante rotina de palestras sobre tapetes ou verduras.
Não tardamos a identificar entre as mulheres descontes nossas protagonistas, Chris (Helen Mirren) e Annie (Julie Walters). A narrativa progride com pitadas ora hilariantes, ora dramáticas, e a rotina vai aos poucos se diluindo. Chris ganha um concurso de confeitaria caseira com uma torta comprada em uma rede de bolos, enquanto Annie descobre que seu marido está com câncer e não demora muito para que acompanhemos o enterro deste.
No luto, surge uma ideia mirabolante de arrecadação de fundos para o sofá: um calendário, anualmente já feito pelo instituto, só que conjuntamente com o preparo de guloseimas e cuidados de jardinagem, contará em cada mês, com uma das personagens posando nua.
Aqui, o filme abre espaço para discussões acerca do envelhecimento, relação corporal, sexualidade e casamentos de longa data, os quais dividem espaço com a luta pela veiculação do calendário e a quebra de preconceitos.
Hollywood
Não tarda para que a distribuição do calendário torne as personagens famosas. Nesse ponto, a narrativa míngua o naturalismo e, adubada pelo processo vertiginoso de assédio da imprensa, acaba nos revelando uma fábula das celebridades: avião de primeira classe com poltronas reclináveis, suíte duplex, encontro com banda de rock, entrevista em talk show. Elementos que temperam o segundo ato do filme, e que, de tão desafinados, quase se descolam do restante do filme.
Mas, desde de Cinderela e companhia, e até antes dela, toda fábula tem um momento de reencontro com a realidade e Garotas do Calendário não será diferente. Chega a hora de pesar o objetivo beneficente do calendário, de voltar a cantar no coral e comer batatas depois de uma sessão de yoga. Enfim, de se reacomodar no dia a dia, mas não sem antes posicionar o calendário em local destacado na parede.
Curiosidade
Com mais de 800 mil cópias vendidas, o calendário arrecadou, até 2009, mais de 2 milhões de libras, o que equivale a 8 milhões de reais.
Serviço:
“Garotas do Calendário”, EUA / Inglaterra, 2003, 108 min, Cor
Título original: “Calendar Girls”
Gênero: Comédia/Drama
Direção: Nigel Cole
Roteiro: Juliette Towhidi, Tim Firth
Com: Julie Walters , Helen Mirren, Annette Crosbie, Celia Imrie, Ciarán Hinds, Geraldine James, John Alderton, Linda Bassett, Philip Glenister
Distribuição: Buena Vista
Classificação etária: Livre
Nas locadoras: em DVD

Graduado em Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal Fluminense (clique aqui para falar com o colunista)